VIDAS AO FUMO​​​​​​​

A produção de tabaco por uma família no interior de Santa Catarina

Uma fotorreportagem por Felipe Buzzi
Estas imagens trazem a história de uma família produtora de tabaco na região do Alto Vale do Itajaí, no interior de Santa Catarina. Suas condições de vida no meio rural, o trabalho árduo durante os períodos de colheita, o desgaste físico e emocional, são retratados numa série de pequenas sessões fotográficas, todas com um texto introdutório sobre o tema abordado.

O tabaco, também conhecido como fumo, é uma planta atraente por seu aspecto verde e aveludado. Ele passa por uma série de transformações físicas e químicas antes de ser vendido em cigarros. Inseridos em um sistema de integração com a indústria, os produtores vivem questões relacionadas ao trabalho intenso e à remuneração desigual entre os setores. Assim como a folha, o aspecto físico e emocional do produtor em meio ao trabalho também cai sobre a terra. 

A fotorreportagem se preocupa principalmente em fazer um retrato justo e humanizado dessa realidade. Foram sete meses acompanhando o trabalho da família para conhecê-los a ponto de escrever sobre suas vidas, de forma que fossem lidos e vistos com devida significância. Afinal, como disse Peter Turnley, fotojornalista estadunidense, a fotografia “é sobre compartilhar a experiência humana, querer conhecê-la, tocá-la, se importar com ela e, muitas vezes, o que é mais poderoso nisto não são as respostas que são dadas, mas sim as perguntas que são feitas."

Reportagem apresentada como Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina

O tabaco, antes de ser transformado em cigarros brancos vendidos em maços, é uma planta bonita e aveludada
VALOR BRUTO DO TABACO
No Brasil inteiro a produção de fumo envolve, mais ou menos, 160 mil famílias. Dessas, 150 mil estão concentradas na região sul do país, todas organizadas em pequenas e médias propriedades — entre 4 a 15 hectares de área — de produção familiar. Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná são responsáveis por 97% de toda a safra anual do fumo em folha seca do país. Em peso, isso significa entre 650 a 700 mil toneladas por ano.

O mundo inteiro fuma o tabaco brasileiro. O país é o segundo maior produtor do mundo, atrás da China. É líder em exportações por mais de duas décadas, considerando que mais de 75% de toda a safra é destinada à demanda do mercado internacional. Em 2017, o valor acumulado em exportações de fumo passou de dois bilhões de dólares. Bélgica, China e Estados Unidos são os maiores compradores. Todas as indústrias que exploram a fumicultura no Brasil estão ligadas a multinacionais estrangeiras que possuem usinas e sedes corporativas nos três estados do sul. 

O valor do tabaco varia bastante de ano em ano, dependendo da demanda externa, assim como o número de agricultores envolvidos e a produção total. Na safra 2017/18, de acordo com a Associação do Fumicultores do Brasil (Afubra), o preço médio do quilo do fumo chegou a R$ 9,15 na região sul. Foram plantados 297.460 hectares por 149.350 famílias — produzindo um total de 685.953 toneladas.  Além disso, a definição do valor pago é feita pelas empresas contratantes — que precisam cumprir com a classificação da folha, padronizada pelo Ministério da Agricultura. 
Dependendo da qualidade da folha e da espécie cultivada, o preço pode variar de R$ 0,70 (baixa qualidade) a R$ 11,71 (ótima qualidade) o quilo. Levando em consideração o rendimento de 2,3 quilogramas por hectare, e o preço médio de R$ 9,15 o quilo,  um produtor com seis hectares de fumo plantado obtém um faturamento bruto anual de R$ 126 mil. No entanto, considerando os gastos com despesas e financiamentos, a renda líquida mensal pode chegar a dois salários mínimos mensais.

Apesar das duras condições de trabalho, o bom rendimento anual em pouco uso de terra é o que atrai agricultores à fumicultura. Comparado com outras safras, milho e cebola por exemplo, o fumo muitas vezes é visto como a única alternativa viável para sobrevivência do pequeno agricultor. Muitos plantam e colhem fumo desde crianças até o fim da vida.
Uma das características do fumo é a sua textura aveludada e o seu cheiro forte, enjoativo e adocicado
Nicotiana Tabacum L.
O fumo é uma flor verde-amarelada, clara e densa, em sua essência, do caule à folha. Se assemelha a um vestido aveludado, à moda antiga. Durante a safra, uma plantação crescida forma um mar verde completo sobre a terra. O caule central é cilíndrico, rígido e ramoso, chegando até dois metros de altura. Ele sustenta as folhas pesadas que cedem à força da gravidade e caem. A barra do vestido é formado pelas plantas baixas e médias. Essas são as maiores, as que se arrastam na terra. De vez em quando, pelo calor, ou pela idade, as folhas podem amarelar e soltar do pé, perdendo a vida e o valor. A textura das folhas se assemelha a um veludo grudento e espesso. Os frutos, quando não capados, destoam de todo o corpo, eles ficam no topo, são grandes, rosados e atraentes.

Existem diversas variedades de tabaco — Virginia, Burley, comum, oriental etc — sendo a primeira o mais plantada na região sul do país. O que difere uma da outra, principalmente, é a colheita e o processo de cura — secagem da folha em estufas ou galpões. O Virginia, por exemplo, é colhido folha a folha, do pé ao topo, enquanto o Burley é colhido o pé inteiro. O Burley passa por um processo de cura mais lento, em cerca de 40 dias ao ar livre e exposto ao sol. O Virginia exige entre quatro a cinco dias dentro de estufas com controle rígido de temperatura e umidade — este é o método mais utilizado pelos fumicultores da região sul. 

O plantio do tabaco pode ser dividido em quatro etapas: a produção das mudas, o cultivo na terra, a colheita e a cura. Após as quatro etapas, o agricultor mantém as folhas secas, douradas, em um galpão, protegido de chuva e vento, chamado de paiol. No paiol, eles iniciam o trabalho manual de fazer as manilhas, ou “bonecas”, que são leques semelhantes às petecas de badminton. A classificação do preço do tabaco, de acordo com a qualidade, é feita pela companhia contratante, que define o valor por arroba.

Durante todo esse período, é exigido do fumicultor um trabalho preciso. A rigidez das companhias em manter os padrões de qualidade, além de todo o estresse provocado pelas condições de trabalho, tornam o desgaste físico e emocional uma realidade áspera, seca, muitas vezes doentia, para o fumicultor que depende do fumo para sobreviver.
Se não for capado, o fruto cresce rosado nas pontas e a folha fica reduzida e desvalorizada
Em todas as etapas o trabalho é ma  nual, as folhas são sempre remexidas de mão em mão, arrancadas de pé em pé, transpor tadas a estufas e separadas para venda em leques individuais
DA AMÉRICA PARA O MUNDO
O fumo é uma planta americana. A origem e o uso do tabaco no ocidente, de acordo com historiadores, é de tempos imemoriais, sendo já utilizado por indígenas americanos muito antes da chegada dos europeus no século XV. O hábito de enrolar o fumo seco em palheiros ou fumar a erva em tubos largos era muito comum, seja casualmente ou para formalidades religiosas, comerciais e políticas. 

Na Europa, o fumo foi introduzido logo depois da descoberta do “Novo Mundo”. Viajantes europeus descreviam os hábitos nativos de fumar a folha do tabaco, e retornavam carregando sementes de fumo. No artigo “Tabaco e tabagismo na história do México e da Europa”, os pesquisadores Alfredo de Micheli e Raúl Izaguirre-Ávila descrevem o motivo que inspirou o nome da nicotina. Ainda na metade do século XV, Jean Ni-cot, um embaixador francês, enviou uma amostra da folha de fumo à sua rainha, Catalina de Médici, descrevendo-a como uma “cobiçada erva, com virtudes medicinais” — a partir dali, não demorou muito para que o tabaco se tornasse popular.

Nos séculos seguintes o tabaco destinado à exportação se tornou  um dos principais meios de renda da corte portuguesa. Durante o período colonial no século XVII, Portugal era um dos maiores produtores de tabaco, responsável em abastecer a demanda do comércio europeu. Toda a produção era concentrada e restrita ao Nordeste, em pequenas propriedades com mão de obra escrava e familiar. As primeiras lavouras de fumo surgiram no litoral entre Salvador e Recife. Somente no século XIX o tabaco começou a ser cultivado em outras regiões do país. Na região Sul, passou a ser explorado a partir de 1850 devido às pequenas propriedades cedidas a imigrantes europeus em Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Em um século, a região sul do Brasil se tornou  responsável por 52% de toda a produção nacional de fumo em folha seca, mais ou menos 27 mil toneladas naquela época. Em 2017, praticamente toda a produção de tabaco, 97%, veio da região sul, um pouco mais de 600 mil toneladas de fumo por ano. 
Os lotes são cobertos pelo verde da folha que toma conta de toda a paisagem do terreno de seo Baco, em Laurentino
LAURENTINO
Como outras tantas cidades pequenas de Santa Catarina, Laurentino continua sendo pacata e distante. Ali a vida toca devagar. Sua população de um pouco mais de seis mil habitantes é formada, principalmente, por descendentes de imigrantes europeus, italianos e alemães. Nardelli, Nasato, Tonet, Schulz, Müller, Koch. Mas também há os “brasileiros” — chamados assim os que não são de famílias de sobrenome tradicionais do “Vale Europeu”. Da Silva, Pereira, Rosa, Souza. 

Por mais que tente ser terra europeia, Laurentino continua sendo brasileira. Terra explorada por um Pereira, açoriano, João Venceslau Pereira, no início do século XX às margens do Rio Itajaí Oeste. O nome “Laurentino” vem de seu primo, Manoel Laurentino de Andrade. No livro “A Memória Retratando Nossa História”, Valdemiro Avi, historiador e ex-prefeito, descreve Manoel como um “indivíduo que tinha habilidade de cavar poços”. Cavou tanto poço que sua popularidade nomeou o município. A história contada deixa ambiguidades no destino de Manoel Laurentino. De acordo com o livro, ou ele foi expulso por posse ilegal de terra, após a distribuição de lotes à colonização europeia, ou simplesmente não quis ficar. Juntou o que tinha, pertences, família e sumiu dali. 

O município fica no Alto Vale do Itajaí, no interior do estado, entre Rio do Sul, Lages e Curitibanos. É cortado pelo Rio Itajaí Oeste e pela rodovia SC-350. O centro urbano é parcialmente asfaltado. Apesar de pequeno, é agitado e barulhento. Algumas dezenas de pessoas agitam a cidade atrás do comércio, das padarias, colégios, e das variadas indústrias. A praça é onde tem a maior concentração de gente. O número de carros e automóveis pode ser considerado desproporcional ao tamanho da cidade, mas a inquietação causada por eles é sinal de modernização, de barulho e de cidade que quer ser grande.

Não muito longe do centro existem pequenas propriedades rurais, todas de agricultura familiar, com área entre 5 e 6 hectares de terra. De acordo com o IBGE, apesar da redução dos últimos anos, ainda são 243 famílias que ali vivem da agricultura, principalmente do fumo e pecuária.
Cortado pelo Rio Itajaí Oeste, o município de Laurentino é dividido entre propriedades rurais e urbanas
COMUNIDADE SERRA SÃO PAULO
Se afastando um pouco do centro, depois de alguns quilômetros de estrada de chão, no interior de Laurentino há uma pequena comunidade rural, conhecida como Serra São Paulo, formada por famílias de pequenos produtores rurais. O relevo de morretes e barrancos torna a paisagem uma coisa confusa, mista, misturando cultivos e lotes de terra diferentes. As casas vizinhas não são tão vizinhas assim. De uma a outra são minutos de caminhada, passando por mato ou estrada de chão, permitindo certo silêncio e privacidade. 

Também há gado solto em lotes aleatórios, dependendo da renda da família a quantidade é maior, mas raramente passa de meia dúzia, mesmo assim isso é considerado fartura. Há muitos cães e motocicletas. Os cães estão sempre soltos, são todos vira-latas, sempre latem para os pedestres e sempre tentam morder os pneus das motocicletas. Todas as casas são estabelecimentos agropecuários completos. São formadas por uma família de quatro ou cinco membros, um rancho para utilidades, outro para animais — suínos, galinhas e gados. As galinhas são livres para circulação e costumam andar em bandos. Os porcos estão sempre presos para o abate da carne, raramente são vistos. As vezes gostam de se amontoar na grama e nas cercas que dão para a beira da estrada.

Há um pequeno santuário da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, localizado ao lado de uma pequena fonte de água mineral, onde se escuta apenas o barulho da água e o som de grilos ou cigarras. Subindo mais à frente, uma igreja antiga, toda branca com uma cruz na ponta superior, pode ser vista de longe, mais para cima, cravada no centro da comunidade, imponente, ponto de referência para quem sobe do centro.

Depois de passar pelo gado e subindo à direita, antes de chegar à igreja, numa das primeiras bifurcações da estrada principal, encontramos outro pequeno santuário escavado na parede de um muro de barro, preenchido por pequenas imagens de santos e símbolos católicos. Eles pertencem à família de Adair da Silva e Marlete Atanazio, que moram logo na frente, numa casa rosa-lilás, perdida no meio do mato, entre os morros, cercada por barro, lama e fumo. Ambos ali vivem como sempre viveram, plantando e colhendo tabaco.
Distante do centro, a comunidade Serra São Paulo é cercada por morros, propriedades rurais e estradas de chão
FUMO DA SILVA E ATANAZIO
Conheci Adair da Silva e sua família numa manhã nublada de setembro, em minha primeira saída ao campo. Ele estava na frente de casa com sua esposa, Marlete, e com seu irmão Célio puxando um cigarro e jogando conversa fora na fumaça. Os três estavam ali esperando qualquer coisa naquele dia, menos eu.

A casa é como se fosse desenhada por uma criança de onze anos por sua simplicidade e beleza. É um retângulo que toma formas para os cômodos, quarto cozinha banheiro sala, coberta por um telhado tradicional e uma clássica chaminé de onde sai a fumaça do fogão a lenha. Algumas partes da casa ainda não foram pintadas, talvez por serem muito novas, mas o contorno do jardim de Marlete, feito de orquídeas e outras flores, ofusca qualquer falta de cor. 

A casa é cercada principalmente por fumo. Naquele dia os pés ainda estavam miúdos, plantados há poucos dias, não passando do calcanhar. A mão seca e as gotas de cimento no cabelo de Adair eram por causa da segunda estufa que ele levantava, ao lado da primeira, bem à frente de casa. Mais aos fundos, um chiqueiro pequeno abrigava um suíno imenso de gordo, que algumas semanas depois abasteceu a temporada de carnes no congelador. Do outro lado, os bezerros tomam leite, as vacas fazem o de sempre, e juntos dormem na estalagem que fica ao lado do silo sempre coberto por uma lona. São tantos cheiros que fica impossível filtrar um. O olfato costuma definir tudo como cheiro de roça.

A rigidez de todos os formatos daquela terra e as irregularidades da lama descrevem as inúmeras rugas na pele de Adair. Toda a simplicidade colorida e o silêncio amigável, sonhador, descreve a força de Marlete. Ali eles vivem há treze anos com uma filha única do casal, Milena, adolescente afastada de tudo, mas paciente com que acontece em sua volta. A família Da Silva Atanazio é uma entre tantas outras que vivem da realidade do fumo.
O casal posa no jardim ao lado de casa; no interior, o fogão a lenha fica ao lado da jane la que dá de frente a uma parte do terreno cultivado por fumo
ADAIR DA SILVA
O corpo é duro como ferro e funciona como uma máquina, um carro, um velho robô enferrujado. A voz nem sempre é serena. No meio de algumas inquietações da vida, costuma surgir um tom confuso e nervoso em volta de resmungos. De longe aparenta ser um homem calmo, mas é quase sempre um homem carregado emocionalmente, engraxado para nunca deixar de funcionar.

Ele sempre tosse. No meio de uma história ele tosse de três a quatro vezes. A tosse também antecede a risada e é o que deixa a sua voz levemente rouca, é o que tira o seu ar. Mas ele parece não se incomodar, não notar. Ele não gosta de cigarros, mas sempre anda com o palheiro na mão. Vira e mexe ele saca uma folha de milho seca do bolso, espalha o fumo preto, e acende com o isqueiro que sempre o acompanha. Depois de algumas tragadas, bota atrás da orelha. Durante o dia ele diz que fuma três desses, um de manhã, um de tarde e um de noite. Se fosse fumar cigarro, diz que fumaria uma carteira ou duas por dia.

O palheiro, como hábito, só compete com o café. Dentro de casa, na mesa da cozinha, sempre que conversávamos eram duas ou três xícaras cheias de café preto até a borda, uma duas três colheres fartas de açúcar. Tem dificuldades para dormir, até porque sua rotina durante o período de colheita não favorece o sono. 

Seu corpo se assemelha de alguma forma ao de meu falecido avô, ambos viveram do fumo.  Seu corpo também é igual ao de todos os seus irmãos. Igual a de outros que vivem da terra. É áspero e rígido para que de alguma maneira eles consigam cravar o pé no chão e na lama todos os dias sem deslizar. A energia que eles carregam parece ser inesgotável. Só acaba quando o corpo morre.
Quando o conheci em setembro, antes da colheita, ele tentou me passar essa impressão que se tem de uma máquina. Em poucos meses eu pude conhecer outro Adair. Pude ver que sua energia não é inesgotável, assim como não deve ser a de nenhum outro homem com uma vida igual a dele.
A pose marrenta de Adair condiz com a sua figura orgulhosa; o palheiro no bolso sempre o acompanha em qualquer circustância
MARLETE ATANAZIO
Naquela casa ela é a única que costuma falar sobre sonhos. É baixinha, jovem, e carrega nas costas uma bagagem pesada de vivências. É sempre muito receptiva, todos que respondem ao seu sorriso fazem parte imediatamente de sua família. Não tem vergonha de assumir que a vida é sofrida. Sempre foi assim e desde sempre foi cercada por tabaco.

Marlete Atanazio tem 43 anos. É sete anos mais nova que seu marido. Se assemelham muito, principalmente na forma em que enxergam o trabalho. Ambos viveram a vida inteira dentro de roças de fumo, cercados por uma penca de familiares. Ela tem cinco irmãs e quatro irmãos. Entre as irmãs é a única que ainda vive no fumo, mas todas em algum momento da vida trabalharam na roça. Marlete diz que desde pequena ajudava a carregar folhas de fumo durante a colheita. Hoje em dia está envolvida diretamente em todas as etapas da produção. Carregar peso, para ela, é o mínimo dos problemas.

Alguns de seus sonhos são dirigidos especialmente à sua filha, Milena. Embaixo do sol quente, durante a colheita, ela sonha em voz alta com a filha terminando o ensino médio e cursando medicina ou algum outro curso superior. Ela se preocupa minuciosamente com o bem estar e o conforto de toda a família.

Marlete resiste em cima de uma corda que ainda sustenta toda a sua sensibilidade. O jardim em volta da casa é uma tentativa de manter o aroma e impedir a lama de bater na porta da frente. A cor roxa da casa se distancia das cinzas de fumaça que vem das estufas. Onde tudo em volta é marrom e fumacento, naquele pequeno círculo colorido onde fica a casa podemos encontrar uma certa paz e tranquilidade que, de certa forma, ofusca, positiva ou negativamente, qualquer desesperança causada pelo trabalho árduo e exaustivo do campo. 

Da mesma forma em que ela se permite sofrer a vida como é, Marlete reconhece que é dona de seu próprio sorriso. De todas às vezes que estive lá, esse era um dos traços de sua personalidade que jamais faltou.
Marlete naturalmente demonstra sua força e sensibilidade como mulher que vive no cam  po; a timidez e o sorriso no rosto correspondem à sua personalidade
DURO COMO FERRO
Adair da Silva planta tabaco desde criança pequena. Hoje tem 50 anos e um bigode perfeitamente delineado. É um dos 16 filhos de João Leopoldo da Silva e Maria das Neves da Silva, ambos ainda vivos, em Laurentino. Perdeu quatro irmãos pequenos pela fome e miséria da realidade na época. Entre seus irmãos, tanto os homens quanto as mulheres, todos passaram pela plantação e a maioria ainda vive da venda do fumo.

Adair nasceu em Aurora, município próximo, onde os pais já plantavam fumo, mas cresceu em Presidente Nereu. Casou pela primeira vez antes dos 30 e teve dois filhos, Marilene e Leandro da Silva. Ambos os filhos, hoje adultos, moram “na cidade”, distante do pai,  em outra realidade. Depois se casou com Marlete, aos 32, antes de vir para Laurentino. Ali tiveram Milena, que faz 15 anos em 2019. Apesar das dificuldades em que vive, Adair reconhece a miséria do passado e se diz rico em comparação a tudo que viveu. 

Ele é dono daqueles seis hectares de terra há mais de 15 anos — conseguiu financiamento viável na época com o Banco da Terra. Ali planta, junto com a esposa, até 6 hectares de fumo por ano. As outras fatias da terra ele reserva para outros tipos de plantação, principalmente para o milho que abastece e mata fome de uma dúzia de cabeças de gado.  Adair é dono de um Fiat Uno Mille branco, de uma moto Bis, de um trator, uma carreta e duas estufas. Dentro de casa tem uma mesa sempre cheia, a geladeira abastecida, um fogão elétrico moderno ao lado do outro a lenha, panelas de alumínio, uma televisão 32 polegadas FullHD, um sofá e um cinzeiro no meio da sala.

Quando não está plantando fumo, durante o inverno e outono, Adair também trabalha como pedreiro, fazendo bicos na cidade para ajudar na renda. Entre uma coisa e outra, Adair prefere o fumo. Sente que é dono das próprias decisões. Plantando fumo ele não depende da ordem de ninguém para se incomodar, além de ter que responder os padrões da empresa em que fechou contrato. No entanto, considera o trabalho de pedreiro mais leve, e aproveita o inverno pra repor a energia que vai precisar para a próxima safra.
Durante a colheita, Adair tenta se manter em pé entre tragos no palheiro e descansos sob sombras
FORÇA E SENSIBILIDADE NO TRABALHO
Marlete é natural de Aurora, município a 30 km de Laurentino, onde conheceu Adair. É uma entre os nove filhos de Mário e Paulina Atanazio. Entre suas cinco irmãs é a única que permanece no fumo — todas foram para a cidade atrás de outros empregos. Também já foi casada antes de Adair, teve dois filhos no primeiro casamento, Fernando e Leandro, ambos não trabalham com fumo e vivem na cidade. 

São muitas semelhanças que Marlete compartilha com seu marido. Além de ambos terem dois filhos antes do casamento, ambos trabalham fora durante o inverno para complementar a renda. Marlete já foi costureira e hoje é diarista. Durante o período de plantação ela trabalha quintas e sextas em algumas casas no centro de Laurentino. Ela me diz o quão desconfortável são os olhares de quem vive na cidade sobre aqueles que vem da roça — os “colonos”, como ela chama. Mas isso não a impede de montar na sua Bis com frequência e descer a serra em busca de renda extra para a família.

Laurentino carrega um tom de ironia elitista, onde existem alguns focos de mansões e carros luxuosos no centro da cidade, numa vaga tentativa de negar o caráter rural que sustenta o município. Isso é uma das coisas que incentivou Marlete e Adair a me contarem sobre suas vidas. Marlete reforça constantemente a importância de contar sua história, de ter essas fotos. Sentiam-se constrangidos ao se verem na fotografia, reconhecendo na imagem o desgaste físico de quem trabalha na roça, mas isso não os impediu de posar com certo orgulho em cada retrato tirado.

Todos os dias em que estive lá era recebido pelo melhor da culinária rural feita por Marlete. Pães caseiros, nata, doce de leite, geléia, cuca, bolachas variadas e um café quente, forte, filtrado no pano. No almoço era arroz, feijão e carne ensopada, acompanhados de uma mistura de saladas frescas. A mesa daquela casa é sempre farta e tudo vem do trabalho diário que eles realizam no campo. Internet, televisão, energia, carro, moto, são pequenos luxos obrigatórios que o casal conquistou em uma vida de sofrimentos, feita de altos e baixos, entre a terra e o tabaco.
Além das obrigações dentro de casa, Mar lete também ajuda em todas as etapas da produção, tornando o trabalho ainda mais cansativo e desgastante
SISTEMA INTEGRADO DE PRODUÇÃO
Quando a Souza Cruz passou a ser subsidiada da British Royal Tobacco (BAT) — companhia inglesa de cigarros — em 1918, criou o Sistema Integrado de Produção de Tabaco (SIPT), vigente até hoje, com o objetivo de aumentar a produtividade e facilitar a relação entre produtor rural — empresa. Por ter tido relativo sucesso, o modelo passou a ser adotado por outras companhias atuantes no setor. Hoje quase todas são ligadas a multinacionais estrangeiras — Universal Leaf Tobacco, Alliance One International e a Japan Tobacco International, entre outras. 

O sistema atualmente funciona por uma série de contratos entre o produtor e as empresas. É como se fosse uma troca. O agricultor recebe garantias incluindo insumos, assistência técnica, financiamentos e outras coisas, vistas como benefícios. Em troca, as empresas tem a compra garantida da folha pelo vendedor. Além disso, o preço é definido por elas, que avaliam a demanda internacional e anualmente taxam um valor para cada tipo de folha. 

Os tipos variam muito entre as qualidades classificadas. A classificação precisa cumprir com a Instrução Normativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, de 2007. Em Santa Catarina o cumprimento é regulamentado pela Cidasc (Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina); no Rio Grande do Sul pela Emater (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural); e no Paraná pela Codapar (Companhia de Desenvolvimento Agropecuário do Paraná). São em torno de 40 tipos de folha, Virgínia, padronizadas pelo Ministério.
Por causa do sistema integrado, a rentabilidade dos fumicultores muitas vezes é considerada estável, sendo que muitos conseguem obter renda acima de dois salários mínimos mensais com a venda do fumo. No entanto, justamente por depender das flutuações do mercado externo, nem sempre essa relação é rentável. Entre os agricultores mais pobres, por exemplo, a fumicultura não é garantia de segurança. Com esse sistema, a produção acaba sendo uma das únicas alternativas viáveis aos olhos do pequeno produtor, gerando certa dependência ao cultivo, o que pode precarizar ainda mais a qualidade de vida no campo — entre os mais pobres, o fumo pode chegar a 80% de toda a renda agrícola.

Apesar dos avanços dos últimos dez anos, no sentido de promover políticas públicas de apoio à diversidade agrícola — gerando mais segurança e estabilidade financeira aos pequenos agricultores que não querem depender do fumo — o balanço na distribuição de renda entre os envolvidos na cadeia produtiva do cigarro continua desigual. O produtor rural, por fim, vive pelo preço da fumaça.
Descalço sobre as folhas, Adair prepa ra as “bonecas”, as manilhas de folha seca que serão vendidas à empresa que comprou sua safra
DOENÇA DA FOLHA VERDE DO TABACO
Após algumas horas carregando as folhas de fumo verdes e úmidas, é bastante comum os plantadores apresentarem uma série de sintomas como enjôos, vômitos, náuseas, tonturas, dores abdominais, alterações na pressão arterial e diarreia. Muitos estudos e relatos indicam que são sintomas muito comuns e específicos dentro de plantações de tabaco, causados pela exposição direta à nicotina; os sintomas ganharam até uma denominação específica, chamados de Doença da Folha Verde do Tabaco (DFVT).

De acordo com o artigo “Cultivo do tabaco no sul do Brasil: doença da folha verde e outros agravos à saúde”, das pesquisadoras Deise Lisboa Riquinho e Élida Azevedo Hennington, há relatos da doença desde o século XVIII, na Itália. Além da DFVT causada no momento da colheita, as pesquisadoras indicam uma série de outros problemas relacionados ao cultivo, como doenças respiratórias, causados pela fuligem da folha seca, no período da cura do tabaco nas estufas.

Não há dados específicos que possam apontar com clareza o número de casos de DFVT no Brasil. No entanto, a Organização Mundial da Saúde reconhece desde 2005, na Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CQCT), uma série de problemas envolvidos na cadeia produtiva global do fumo — desde mortes por consumo de cigarros, trabalho infantil e a própria DFVT. O Brasil é um dos 180 países signatários da CQCT, sendo responsável em seguir uma série de protocolos para apresentar alternativas viáveis ao produtor na intenção de reduzir a produção de tabaco, além de incentivar políticas públicas de consumo anti-tabagistas.

Entre as alternativas ao produtor, é sugerido o uso de roupas específicas para prevenir a absorção de nicotina durante a colheita. Trata-se basicamente de uma lona branca que cobre todo o corpo. Adair e Marlete, apesar de dizerem que nunca passaram mal na roça, conhecem a doença pelos outros, mas preferem não usar a roupa por ela ter um custo que vai ser cobrado no final e por ser muito quente durante a época de colheita. Pela falta de praticidade e conforto do vestuário sugerido, não lhes resta opção a roupa casual de manga comprida e luva.
O esforço físico intenso embaixo do sol quente é extra mamente desgas tante, em poucas horas de trabalho o corpo já começa a sentir dores e cansaço, ] além de estar diretamente exposto à nicotina da folha
COLHEITA SOB SOL E SUOR
Geralmente começa no verão, quando o fumo está pronto para ser colhido, ali entre final de outubro e começo de novembro. É uma etapa que dura entre três a quatro meses, dependendo da mão de obra e da quantidade de terra plantada. A colheita se dá simultaneamente ao processo de cura nas estufas, sendo um trabalho intensivo e exaustivo pelas longas jornadas.

A flor do tabaco passa por um processo de mutilação durante o período da colheita manual do fumo. As folhas nunca são totalmente arrancadas do pé de primeira. O trabalho começa por baixo, pelo que chamam de baixeiro, que são as folhas mais baixas localizadas na base da flor — também são as que possuem as melhores propriedades para o cigarro. Demoram algumas semanas até que o pé seja totalmente “pelado”, quando é deixado na terra para secar e morrer.

A colheita quase sempre começa de manhã cedo, quando as folhas ainda estão úmidas ou molhadas pelo sereno. O trabalhador é cercado pelos pés de fumo, que chegam a mais de um metro e meio de altura. Dentro da roça eles costumam usar algumas vestimentas específicas como botas, luvas, chapéu, calças e camisetas compridas para cobrir todo o corpo. 

No campo eles se dividem em fileiras, um do lado do outro, cada um com uma fileira. Eles começam em tempo sincronizado. O corpo mergulha se inclinando completamente para alcançar a base do pé. Rapidamente arrancam uma duas três quatro folhas e partem para o próximo. Uma duas três quatro folhas e de novo. 

Quando acaba o assunto da conversa, em meio ao silêncio se ouve o tec tec tec das folhas quebrando no pé. Elas são grandes, maiores que um antebraço médio, e são acumuladas entre as axilas até não dar mais. No meio do caminho eles entregam o acúmulo a quem está incumbido de levar até a carroça. Este abraça o peso de algumas dúzias de folhas e marcha para empilhar em cima da carroceria. Toma um ar, estica a coluna e as pernas, respira fundo e volta para o mergulho. Isso é repetido durante o dia inteiro por horas durante meses pela vida inteira e sempre igual, até não dar mais.
A folha cria uma espécie de melaço que gruda nas mãos protegidas por luvas; na colheita eles vestem bonés, chapeus, calças e mangas compridas para proteger contra o sol quente
PROCESSO DE CURA DA FOLHA
A cura talvez seja uma forma educada de dizer o que acontece à folha do tabaco e ao trabalhador nos momentos finais da colheita. É o momento mais desgastante para o agricultor, justamente por demandar mais esforço físico e cuidado especial para evitar prejuízos e acidentes. É quando finalmente a folha adquire propriedades físicas e químicas usadas na produção de cigarros, charutos, fumos em geral — é o que vai determinar, afinal, o sabor específico e a qualidade de cada marca.

Existem diversos métodos para a cura do tabaco, variando pelo tipo de fumo plantado. No sul do Brasil, no entanto, é muito comum a cura feita por estufas elétricas por causa do fumo Virgínia. São como pequenos galpões de armazenamento, onde as folhas verdes são amontoadas. O calor vem de um forno externo que aquece o interior via tubos de ferro. A eletricidade serve para monitorar a temperatura via um painel digital, controlado por fora pelo produtor. São toras grandes e pesadas de madeira injetadas com frequência precisa nas estufas para alimentar o fogo interno.

A cura acontece em basicamente quatro etapas — amarelamento, murchamento, secagem da folha, secagem do talo — e cada etapa dessa dura de 18 a 60 horas. Durante esse período o trabalhador deve alimentar o fogo a cada três horas, em média, durante todas as etapas — que pode tomar dias — e monitorar a temperatura de acordo com o painel elétrico externo. 

É extremamente comum e temível entre os trabalhadores casos de incêndio causados por má instalação ou monitoramento das estufas. De acordo com a Afubra, na safra 2017/2018 foram registrados 1261 casos de incêndio, levando a perda total de safras inteiras além de botar a vida dos trabalhadores e familiares em risco. A Associação é responsável por um auxílio que socorre famílias vítimas de prejuízos causados pelas estufas ou por granizo e tempestade durante a colheita.

O cheiro adocicado e a fuligem que contamina o ar são características comum em todas as estufadas. Adair e Marlete sozinhos retiravam as pilhas de tabaco curado lá de dentro e depositava-os no paiol, que ficava ao lado. Dentro da estufa, apenas uma lâmpada, levada por uma longa extensão, e um buraco, por onde o sol entrava, iluminava e arejava o trabalho.
No interior das estufas a fuligem da folha contamina o ar e invade os pulmões
TRABALHO DE FORMIGA
Eles sobem para a colheita de manhã cedo, sendo uma das primeiras atividades do dia. A primeira refeição, o café da manhã, é tomado embaixo de um eucalipto, entre os pés de fumo e o trator. 

A manhã é o momento mais tolerável da colheita. A folha ainda está úmida, recém acordada. O sol ainda não é tão quente e o trabalhador, ligeiramente descansado, consegue ser mais ágil em arrancar o maior número de folhas. O objetivo diário é abastecer uma das estufas até o limite. Uma estufada de Adair e Marlete é abastecida com duas carretas carregadas até o topo de tabaco. São mais ou menos 450 quilos de fumo por dia de colheita.

Eles sobem para a parte superior do terreno com o trator e a carreta vazia. Na tarde em que estive lá o sol esquentava em 36º C e ameaçava cair em granizo. Adair pilotava o trator com certo orgulho e Marlete sentava ao lado, em cima de uma das rodas. Eu e Tiago DeLuca, vizinho de Adair — um jovem de 29 anos, também produtor de tabaco — sentávamos na carreta vazia atrás. Os cães nos guiavam logo abaixo. 

Lá em cima o tempo fechava e era nítida a expressão aflita no rosto dos trabalhadores. O granizo pode prejudicar uma lavoura inteira de tabaco. As pedras de gelo esmagam e perfuram as folhas de forma que as tornam inválidas para a produção de cigarro. A Afubra é responsável por um seguro que cobre prejuízos causados por desastres naturais — na safra 2017/18 de acordo com a associação, foram 21.651 danos registrados à lavouras. Apesar do seguro, Adair estava aflito em agilizar a colheita — felizmente, nessa safra nenhum prejuízo abateu sua produção.

Durante a colheita sempre há conversa para jogar fora — de forma que o tempo passe mais rápido. O objetivo era voltar para abastecer a estufa antes do anoitecer. Havia alguns momentos de descanso em que Adair acendia o palheiro, Tiago brincava com os cães e Marlete sorria e falava de Milena. Dividimos uma garrafa térmica de 5 litros de água entre nós quatro. As luvas estavam engrossadas por uma cera que a folha solta na colheita. Apesar dos sorrisos aliviados, a expressão era de puro cansaço e calor.
Divididos em fileiras, eles coletam ligei ramente o maior número de folhas que o braço pode aguentar
ROÇA CARROÇA ESTUFA
Quando cheguei, logo após o meio dia, Marlete e Adair, recém almoçados, estavam na função de esvaziar uma das estufas, depositando as folhas secas amontoadas no paiol, que ficava próximo. Na frente ainda estava a carreta semi carregada de tabaco verde, colhido pela manhã entre o casal. Me cumprimentaram, felizes em me ver, no entanto não se deram o luxo de parar o trabalho.

Marlete estava bem lá dentro, no interior da estufa, vestia um boné rosa bem colorido. Adair, abraçado nas folhas secas,  também de azul — mas com a calça jeans rasgada — andava para lá e para cá, entre o paiol e a estufa. A luz lá de dentro vinha de um pequeno buraco para o exterior e de uma lâmpada na porta, que chegava por um cabo de extensão. Dentro o chão é feito de barro úmido, a parede de tijolo à vista, e é possível ver a tubulação de ferro nos cantos superiores. É muito mais quente do que na rua, e a fuligem da folha contamina o ar, incomodando a respiração.

Um corredor é dividido por um corrimão de madeira, onde várias tábuas são postas, formando uma espécie de cama. As folhas verdes precisam ser depositadas em pé para que o calor se expanda melhor por todo o volume. Em cima, no telhado, a tubulação de ferro é o que aquece o interior da estufa. O calor vem de um forno que fica na parte de trás da estrutura, monitorado por um painel elétrico acoplado na parede externa.

Depois de secas, é preciso retirar tudo manualmente. Marlete estava responsável por organizar o volume de folhas lá de dentro. Uma tábua era posta na altura do joelho, formando uma mesinha, onde ela ia depositando um acúmulo de folhas secas. Quando chegava no tamanho ideal, Adair enlaçava as folhas com um fio de barbante, botava tudo no peito e levava para o paiol.

É trabalho de formiga. Colhe tudo e bota na carroça, volta pra casa; tira tudo da carroça e bota na estufa, volta pra roça; colhe tudo de novo e bota na carroça, volta pra casa; encheu a estufa, bota lenha na estufa, volta pra casa; descansa um pouco, volta pra mais lenha; colhe tudo e bota na carroça, volta pra casa; tira tudo da estufa, tudo que está na carroça, bota lenha na estufa, vai colher, descansa, lenha na estufa, colher, estufa, bota tudo, tira tudo e de novo.
As folhas são amontoadas em pé dentro das estufas, onde várias camas de madeira sustentam todo o peso
SÉRGIO, CÉLSIO E CÉSAR
Subindo um pouco mais além do terreno de Adair e Marlete, começamos a nos perder em meio a vários pedaços de terra onde diversas famílias se organizam e vivem de pequenas produções. A estrada tem muitas bifurcações que seguramente não estão no GPS. Adair conhece todos os caminhos e vizinhos. Enquanto me leva serra adentro, montados em sua Bis, ele me indica quem mora ali, quem mora aqui, quem planta o que, quem vai bem ou mal nos negócios e quem é, afinal, o tal de “Kiko das batatas”.

Lá em cima pude conhecer os três irmãos de Marlete, logo ali, naqueles nove hectares de terra que surgem de repente no meio daquelas difíceis subidas. Os nomes são parecidos, um é quase variação do outro: Sérgio, Célsio, César, são os três que plantam fumo — tem mais um ainda, o Célio, mas esse trabalha fora. Todos são filhos de Mário e Paulina Atanazio, de Presidente Nereu, e são apenas uma parte da família de Marlete.

Sérgio, o“Rôda”, mais velho entre os três, tem 46 anos. Apesar da autonomia entre todos, ele aparenta ser o líder, talvez pela idade, ou talvez por ser o único casado e com dois filhos pequenos. Sua esposa, Rosilene, 27, assim como Marlete e tantas outras, cresceu vendo o pai plantando e hoje faz tudo na roça ao lado do marido — colheita, estufadas, peso, carroça, sol. Os dois vivem numa casa menor e menos colorida que a de Adair e Marlete. No entanto, têm o sorriso de duas crianças pequenas, seus filhos, Gabriel, de cinco anos, e Eduardo, de dois. 

O irmão do meio é Célsio, o “Pita”, de 35 anos. É o mais aberto e disposto a falar entre os três, apesar da timidez sempre desconfiada. É solteiro e vive sozinho, ali perto. Pita é muito parecido fisicamente com seu outro irmão, César, de 30 anos. Quando estive lá, Pita planejava ir à praia. César, o mais novo, também vive sozinho, também ali perto, mas é o mais fechado e desconfiado entre os três irmãos.

Em todos é reparável o cansaço físico e mental expresso no corpo e na fala. Rôda — com o “erre” bem puxado e o “ó” tônico — tem o corpo mais duro e cansado que o de Adair e seus irmãos. Pita me diz que às vezes sente vontade de largar tudo. César não gosta de falar muito, apenas diz que o que sente é “a mesma coisa que eles” — de todos eles.
Da esquerda para a direita: Célsio “Pita”, Sérgio “Rôda” e César Atanazio 

As semelhanças entre os irmãos Atanazio são expressas fisicamente pelo corpo e emocional mente pelo cansaço e desconfiança
RÔDA E ROSILENE
Um dia alguém chamou Pita de Pita e até hoje continua sendo o Pita. Rôda não soube me dizer de onde surgiu o seu próprio apelido, nem ele e nenhum de seus irmãos. Não pude mais chamá-lo de Sérgio. O nome, Rôda, do jeito que é falado, condiz com a figura. O erre puxado de seu apelido me lembra sua coluna rígida e de sua postura cabisbaixa, manca. O “ó” tônico simboliza sua vida, um tanto conservada, e seu sorriso amarelado, tímido, que sempre surge no meio de um comentário sarcástico ou de uma piada interna em comum que ele teve com seus irmãos.

Irônico foi o que Marlete me disse algumas horas depois.“Rôda foi a nossa mãe que deu, significa beterraba em alemão, e ele quando era pequeno era o mais roxo de todos, por isso virou “o rôda”. Beterraba é “Rote Beete” em Alemão, sendo a pronúncia de Rote, o erre puxado, bem parecida com o apelido Rôda. Faz sentido: Sérgio, o Rôda, é muito ruivo — e Rote pode virar Rôda facilmente. Chama a atenção vê-lo numa roça de fumo, um pingo vermelho no meio de uma imensidão verde. Talvez foi isso que inspirou sua mãe. 

Naquele dia, Adair havia me deixado para almoçar com Rôda e Rosilene. Depois do almoço sentamos na frente de um banco e ficamos lá em silêncio. Adair tinha “sumido” por algumas horas, boatos de que ele tinha ido tomar uns ‘golão’ em algum vizinho próximo que era conhecido pelos “golões”. Ali a entrevista ficou muda. Rôda exibia uma serenidade praticamente imóvel, o seu silêncio desconfortável exclamava por cansaço, estava fixado em suas próprias ideias. Embaixo da gente, Pita brincava com Eduardo. Montavam um quebra-cabeça extramamente complexo para o menino de 11 anos e relativamente fácil para o outro menino de 30 anos. Rosilene estava amamentando Gabriel dentro de casa, no sofá da cozinha. E César tinha voltado para casa, impaciente.

Adair não chegava, como havia prometido, então Pita decidiu me levar de volta. No carro conversamos sobre Florianópolis. Esperamos por Adair em casa, com Marlete. Apesar da preocupação de sofrer algum acidente ou tombar o carro no meio da serra, a família fazia graça com o hábito de Adair ir beber uns “golão” no vizinho. Ele chegou descendo o morro em seu Fiat Mille branco, torto no volante e nos pés, mas feliz e conversador, muito mais do que estava nos últimos dias. Sentou ao meu lado, tomou o café preto e forte de sempre, e me disse que estava comemorando, finalmente, o fim da colheita.
Rôda e Rosilene esperam para osdois filhos peque nos uma realidade diferente e distante do fumo
PREÇO DA FUMAÇA
Em 2006 o Brasil produziu um pouco mais de 1,1 milhão de toneladas de fumo em folha seca em 500 mil hectares. Dez anos depois, o censo agropecuário do IBGE, em 2017, mostrou que a produção caiu para 614 mil toneladas, em 300 mil hectares, uma redução de um pouco mais de 50% do total produzido. A participação do Brasil na Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CQCT) e a criação de políticas públicas voltadas ao campo foram as principais responsáveis por essa redução.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda aos países signatários da CQCT, da qual o Brasil faz parte, efetivamente, desde 2005, ações imediatas na prevenção do tabagismo ao consumidor, além de provocar alertas sobre as condições a que fumicultores de todo mundo estão submetidos. Apesar de reconhecer o envolvimento do fumo na agricultura familiar, o governo federal, ao lado de sindicatos e instituições voltadas à agricultura, assumiu uma série de medidas em resposta à convenção. Uma das posturas mais significativas foi a alta taxação sobre o setor de tabacos no Brasil, captando mais de 50% de todo o faturamento anual. Os sindicatos atuaram no sentido de apresentar ao agricultor alternativas viáveis ao cultivo, como o  Programa Nacional de Apoio à Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco (PNADCT), do Ministério da Agricultura, cujo objetivo principal não é eliminar a fumicultura, mas sim de melhorar a qualidade de vida no campo.

Entre as famílias, o desconforto em plantar fumo, a vida sofrida como dizem, é senso comum. Adair até brinca ao exagerar que “90% dos plantadores de fumo, plantam por obrigação”. Na verdade, o Departamento de Estudos Sócio-Econômicos Rurais (Deser) indicou numa pesquisa, em 2009, que 72% dos produtores na época gostariam de largar a fumicultura. O descontentamento é resultado das más condições a que estão sujeitos, além da consciência de que o cultivo faz mal, pela nicotina, pelo uso de agrotóxicos e pela relação desigual com a indústria. 

A distribuição da renda total do setor é historicamente desbalanceada. Considerando os gastos de produção em relação à renda bruta do setor, o custo para a indústria é muito baixo, se comparado ao esforço do agricultor e aos financiamentos para investir na lavoura. Um quilo de fumo produz dezenas ou centenas de maços de cigarros. Se pegarmos um maço com 20, via tributos o governo fica com 13, a indústria 4, o varejo 2 e o produtor com  1.
A roça de Adair e Marlete no início da safra. Da janela da cozinha: os pés de fumo maduros pouco antes da colheita
CORPO QUE ADOECE
No final da colheita o sol ainda está quente, o paiol fica cheio e escuro, a estufa vazia, fria e sombria, enquanto o corpo finalmente endurece, a cabeça esgota e dentro de casa, se não tem a família, o homem amolece e deita sozinho, procurando pelo sono que perdeu durante esses meses. Mas tem a família, quando esta não é destruída pelas lamentações do tabaco. Adair e Marlete se seguram nisso, Milena cresce para longe disso. Rôda e Rosilene, jovens e endurecidos, sonham que os dois meninos, Eduardo e Gabriel, cresçam para longe, para longe do fumo.

Tem uma semelhança natural entre o corpo deles e a folha do tabaco. No início é de um verde saturado, exibe vida e é atraente como um abraço. Adair no início estava forte, vivo, firme no chão e próspero na sua visão. Marlete estava como suas flores no jardim, colorida e alegre. A folha depois é remexida, brutalmente arrancada do solo, posta no calor e tem a cor arrancada a preço de fumaça. A preço de fumaça, Adair e Marlete no último encontro estavam exaustos. 

Enquanto mancava, Adair se queixava de dores no corpo. “De noite, quando levanto para botar fogo na estufa, tô com tanta dor no corpo que não consigo levantar o pau de lenha, preciso caminhar alguns minutos, tomar um café, até que o corpo endurece de novo e eu consigo por mais fogo no forno, é o que mais me machuca.”

Marlete se preocupa com o hábito de beber do marido. Apesar das brincadeiras, gera aflição e preocupação. Ela o alerta que a bebida não é saudável. Ele só consegue responder que está comemorando o fim da colheita, afinal o álcool alivia a dor do corpo.

Mesmo que tenha acabado, a família passa meses dentro do paiol, organizando o tabaco em manilhas e vendendo por arrobas à empresa pagante. É muito mais tranquilo, eles dizem, é rápido e é quando entra o dinheiro na conta — o suficiente para viver durante o ano, até a próxima safra. Adair descansa como pedreiro na cidade, Marlete como diarista.

Teve um momento, nos últimos dias, em que sentamos eu, Marlete e Adair, entre as estufas para descansar e comer uma melancia. Naquela região, todos expressam alguma coisa pelo corpo. Mesmo em silêncio eles dizem muito. Quase sempre é cansaço, isso é verdade. Naquela hora, no entanto, Adair e Marlete expressavam um orgulho íntimo da própria história. Uma história arrancada pelo fumo, uma flor verde, densa, que de longe é o cigarro, mas de perto é verde, vivo e com um fruto colorido nas pontas.
Ao longo de toda a safra, Adair se transformou de um homem forte a um homem cansado e machucado fisicamente
VIDAS AO FUMO
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VIDAS AO FUMO

Uma grande reportagem fotográfica sobre a uma família produtora de tabaco na região do Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, Brasil.

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