Carolina Pinheiro's profile

Marcha fúnebre e velas apagadas

Marcha fúnebre e velas apagadas: como comemorar o golpe militar de 1964
A insistência do Presidente em transformar o momento mais macabro da história recente do Brasil em algo menor do que derramamento de sangue e retrocesso
#PraCegoVer: Jair Bolsonaro bate continência e sorri. (Reprodução: Adriano Machado/Reuteurs).
No dia 21 de março de 2019, o atual Presidente do Brasil desembarcou no Chile. Esta viagem internacional, assim como a anterior aos Estados Unidos, se deu em função do desejo de Bolsonaro para que haja uma aproximação entre o Brasil e demais importantes países que compartilhem um governo conservador e apreço pelo liberalismo econômico. Não é à toa que, em seguida, partiu para Israel.

Tratando-se do cenário chileno, a recepção de Jair não podia ter sido menos calorosa. Diante de seu culto a torturadores assumidos, admiração por regimes autoritários e declarações absurdas como “quem procura osso é cachorro” — referindo-se à busca por presos políticos desaparecidos –, a população vítima de dezessete anos de ditadura sob o comando do sanguinário general Pinochet não poderia engolir aquele aceno diplomático. Se o Presidente brasileiro estava ali, sobretudo, para discutir a criação de um fórum de desenvolvimento econômico regional, o Prosul, seu passado já o havia condenado para o povo anfitrião.

Diversos atos políticos foram organizados em repúdio àquele que já demonstrou, diversas vezes, grande estima pelo ditador chileno; inclusive se referindo a ele como “saudoso general”. O próprio chefe de estado do Chile, Sebastián Piñera, classificou as frases de Bolsonaro sobre as ditaduras latino-americanas como “tremendamente infelizes” e afirma não compartilhar de seus posicionamentos contra os Direitos Humanos. Ele enfrentou forte retaliação dos parlamentares da oposição, que se recusaram a participar do almoço de recepção preparado para Jair, além de apresentarem uma monção pedindo que Piñera o declarasse persona non grata.

Não é a primeira vez que Bolsonaro homenageia torturadores e certamente não será a última em que movimentos sociais e grupos alinhados à esquerda se mobilizam contra seus disparates. Entretanto, devemos prestar atenção à diferença entre Brasil e Chile quando o assunto é memória. O dia do golpe chileno, 11 de setembro, é marcado pelo medo. Ano após ano, as manifestações anti Pinochet relembram todo o horror vivenciado naquela época. Lá, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara aprovou um projeto de lei para punir quem negar, justificar ou apoiar os crimes cometido pela ditadura.

Visto que o Brasil adotou, em 1979, uma lei de anistia que perdoou tanto as infrações cometidas por elementos do governo quanto do movimento de resistência, a possibilidade de punir criminalmente os militares envolvidos não encontra espaço legal. O País já coleciona duas condenações na Corte Interamericana de Direitos Humanos em função de crimes ocorridos durante a ditadura; inclusive, em suas decisões, o órgão solicita a revisão da lei brasileira de anistia, uma vez que ela barra a punição diante de crimes contra a humanidade, os quais são imprescritíveis por definição e não suscetíveis a indulto. Porém, apesar de termos ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos e reconhecermos, de modo expresso, a jurisdição da Corte, o judiciário brasileiro impede o cumprimento dessa obrigação constitucional e internacional. Sendo assim, nós continuamos à deriva, em termos de investigação de delitos praticados por agentes do estado na época. Em contrapartida, a Suprema Corte do Chile decidiu, há vinte anos atrás, que sua lei de anistia não poderia ser aplicada a casos de violações de direitos humanos.

Para completar nosso quadro indolente, em terras de AI-5, cinquenta e oito milhões de eleitores votaram em um homem que, uma vez Presidente, determinou que sejam feitas “comemorações devidas” na data do golpe militar brasileiro. Em mais um de seus clássicos e estapafúrdios desdizeres, Bolsonaro negou que a determinação falasse em “comemorar”, mas sim em “rememorar”. Prefixos à parte, no último domingo, dia 31 de março de 2019, não só o filho do Presidente e atual deputado estadual de São Paulo, Eduardo Bolsonaro, como a imprensa do Planalto, divulgaram um vídeo na internet celebrando o golpe de 1964. Ao passo que o “mito” desembarcava em Tel Aviv sem dar um pio sobre a terrível data. O mero fato de ainda termos uma discussão sobre benesses para o País provenientes do regime militar já diz muito sobre a construção da nossa narrativa histórica. Desde a anistia irrestrita até a falta de conhecimento do cidadão médio sobre o que de fato ocorreu nesses vinte e um anos de repressão.

Há de se seguir o rastro de sofrimento e dor deixado pelos militares para construirmos a verdade. A revisão histórica proposta, e por vezes imposta, pela extrema direita brasileira está montando um mentiroso quebra-cabeça lambe-botas que deturpa a realidade. Desde as jornadas de junho de 2013, o número de manifestações clamando por intervenção militar só cresce. Não por coincidência as pessoas surfaram tão bem na onda bolsonarista. Essa ode aos militares, a tempos gloriosos nos quais tudo funcionava e o ressentimento com a democracia, que supostamente só trouxe corrupção e aparelhamento do estado, são exemplos de como a manipulação dos fatos se faz nociva para a memória. A mesma amnésia coletiva se dá com o sistema escravagista, presente no Brasil por mais da metade de sua história após a conquista.

Não há museus suficientes para evidenciar esses momentos de dor, não há conscientização suficiente para que todos tenham noção das atrocidades cometidas. Os brasileiros vivem um estado vegetativo quanto aos seus violentos episódios de tortura. Se tudo estivesse mais vívido na mente do povo, se a história fosse contada sendo fiel aos detalhes, sem relativizações ou apagamentos, talvez não estivéssemos nesse cenário caótico atual. 

Quando se fala em identitarismo, em luta de minorias, há rejeição de todos os lados. Ou não se aprende ou convenientemente se esquece que era a população LGBTQI+ quem sofria com as práticas de higienização durante a ditadura. Que era o movimento negro que sofria com perseguição e espionagem para impedir a propagação da cultura afro no Brasil. Que eram as mulheres que sofriam com assédio e estupros, das mais desumanas formas — inclusive mulheres grávidas. Sem falar na violência inenarrável contra crianças, algumas presas e torturadas com menos de 5 anos. Mas quem orquestrava e direcionava a violência contra tais grupos eram os poderosos — os que estão sendo pintados de salvadores da pátria.
#PraCegoVer: Fotos de filhos de presos políticos durante a ditadura militar no Brasil fichadas pelo DOPS. (Reprodução: O Globo).
Essa ladainha de que o golpe salvou a democracia do País então ameaçada pelo comunismo beira a um surto psicótico. A comemoração de tal feito traduz, de forma imediata, o mais baixo dos mau-caratismos. Quando o Presidente do Brasil nega a ditadura e brada por quem introduzia ratos em vaginas de mulheres, a nação como um todo se apequena. A palavra celebrar ou quaisquer um de seus sinônimos nunca deve estar associada à descrição desse trágico momento da história do Brasil. O golpe não salvou a democracia, ele a extirpou. Isso deveria estar mais do que claro, mas, infelizmente, enfrentamos uma desinformação generalizada, com notícias falsas sendo compartilhadas de maneira constante e sem nenhum escrúpulo.

O senso comum está sendo moldado por forças obscuras, que compactuam com a violência e a morte. Se alguém fala em Direitos Humanos, automaticamente cai no estigma de “defensor de bandido”. Não há diálogo. As redes sociais se transformaram em um grande caldeirão de ódio, onde o maniqueísmo é a lei e a checagem de fatos não existe. Há espaço somente para valores dos cidadãos de bem, como a família tradicional e a adoração à Deus. Mas então, que Deus é esse? A narrativa violenta está pautada em incoerências. Como podem valores tão nobres estarem de mãos dadas com a tortura de seres humanos, por exemplo?

A nossa sociedade aplaude autoritarismo, armas de fogo e tortura enquanto fala de Deus e de família. E ainda que alguns não se alinhem a essa lógica macabra, têm de conviver com os adeptos. Inclusive, as eleições provaram que esses pensamentos odiosos não estão distantes, mas sim dentro do seio familiar de cada um. Grupos de WhatsApp passaram de imagens de pôr-do-sol com frases de bom dia para discussões sobre mamadeiras com formato fálico. A eleição foi vencida através desse tipo de narrativa. Ainda assim, creio que não se deve declarar derrota — pelo menos da disputa ideológica.

Nós podemos estar longe da significativa consciência chilena sobre sua história de repressão, mas, no mínimo, precisamos desafiar a revisão mal-intencionada da nossa. Embora o clã Bolsonaro, seu fã clube e membros do governo estejam comprometidos com a mentira, quem está do lado certo da história deve se comprometer com a verdade. Ainda há muita ignorância sendo confundida com desumanidade. Devemos expor todas as feridas abertas do regime militar e gritar todas as indignações que continuam presentes como seu legado para que a narrativa seja condizente com a verdade. Ampla deve ser a difusão da nossa verdadeira memória. Não há como defender tortura, perseguição, censura e cerceamento de direitos. Ditadura não se comemora. Ditadura se repudia! Nunca mais. Nunca. Mais.
Marcha fúnebre e velas apagadas
Published:

Marcha fúnebre e velas apagadas

Published:

Creative Fields