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Black Mirror e Opinião Pública - Texto para Seminário

Texto criado para seminário de Comunicação Social da Faculdade Paulus de Comunicação e Tecnologia

The Nacional Anthem e a opinião pública

Black Mirror é uma série de televisão britânica antológica de ficção científica, criada pelo produtor Charlie Brooker, em 2011(AdoroCinema). A série apresenta temas obscuros e satíricos com críticas a respeito da sociedade moderna e as consequências das novas tecnologias em nossas vidas.

Em todos os episódios da série existe algo em comum: uma realidade paralela futurista onde a tecnologia influencia a sociedade para comportamentos vistos por nós, do “presente“, como incomuns. A série nos traz, até o momento, 22 episódios divididos em 5 temporadas, que retratam sempre realidades diferentes com tecnologias diferentes.

A série apresenta em cada episódio um elenco diferente, um cenário diferente, até mesmo uma realidade diferente, mas todos se tratam da forma que vivemos agora e da forma que podemos estar vivendo daqui a 10 minutos se formos desastrados. (Brooker, 2011)

    O primeiro episódio, chamado de “The Nacional Anthem (O Hino Nacional) ”, fez o mundo conhecer a série. O episódio narra uma história fictícia, que começa com o Primeiro Ministro Michael Callow (Rory Kinnear), sendo acordado de madrugada pelos assessores do governo para que assistam um vídeo postado no Youtube. No vídeo, a princesa inglesa Susannah (Lydia Wilson), uma celebridade querida por todos os britânicos, encontra-se ferida, dizendo que foi sequestrada e sua vida corre riscos. Para sua libertação é feita apenas uma exigência, que o Primeiro Ministro tenha uma relação sexual não simulada com uma porca real em rede nacional. Os sequestradores também impõem especificações técnicas de como a transmissão deve ser feita, com detalhamentos de ângulos, cenários e vestuários para evitar uma fraude.

Publicado no Youtube, o vídeo alcançou proporções nacionais em poucas horas. O poder público inglês deu a ordem de silenciar todos os meios de comunicação sobre o sequestro e sobre as exigências, porém, a velocidade em que a informação se propaga pela internet é incontrolável, fazendo com que o sequestro chegue ao conhecimento do público em geral, obrigando os meios de comunicação a acompanhar o caso mesmo com a ordem do governo. Ao atingir os trendings topics do Twitter, a opinião pública começa a se formar sobre o assunto.

O simbolismo do porco
    Muitas culturas consideram o porco um animal sujo e imundo, principalmente a cultura judaica, proibindo totalmente o consumo de animais considerados impuros. A relação entre o animal e a imundice vem do texto bíblico. Jesus expulsou uma legião de demônios do corpo de um homem e lhes permitiu que possuíssem os porcos. Quando os demônios possuíram os porcos, os animais deixam de ser imundos para serem criaturas satânicas – daí a expressão “espírito de porco”.

    Os demônios imploraram a Jesus: "Manda-nos para os porcos, para que entremos neles". Ele lhes deu permissão, e os espíritos imundos saíram e entraram nos porcos. A manada de cerca de dois mil porcos atirou-se precipício abaixo, em direção ao mar, e nele se afogou. Os que cuidavam dos porcos fugiram e contaram esses fatos na cidade e nos campos, e o povo foi ver o que havia acontecido. (Marcos 5:12-14)

Na sociedade mais recente, movimentos sociais de protestos como os punks dos anos 70 reinventaram a utilização da palavra “porco”, usada para se referir a policiais, políticos, reis e outros representantes do poder vigente no intuito de rebaixá-los. Ao somarmos essas explicações, fazer com que o Primeiro Ministro de uma nação influente como a Inglaterra tenha relações sexuais com um porco ao vivo para o mundo todo iguala o homem a condição de animal com o qual ele se relaciona, e, simbolicamente, prova que todo poder em nossa sociedade pertence aos demônios e à imundice.

A perda da privacidade
    A internet é um meio de comunicação totalmente diferente dos meios tradicionais. Agora podemos saber em tempo real tudo o que acontecer no mundo, desde o lugar onde seu primo está viajando até mesmo um sequestro. Segundo Harari, 2016, “Estamos saindo da era do Humanismo (onde o centro da atenção era o homem e seu bem-estar) e entrando na era do Dataísmo (o centro se desloca para as informações). “

    A exigência do sequestrador tem um motivo bem claro: um ataque ao governo e ao do Primeiro Ministro para enfraquecer sua imagem. Se não existisse a internet, dificilmente o caso vazaria para a mídia e o sequestro se limitaria a uma fita enviada ao palácio da realeza com os comentários abafados por ordem do governo. A internet é como um mar incontrolável de informações, uma vez postada, mesmo que apague, existirá um backup feito por alguém do outro lado da rede. Uma vez postada, conseguirá atingir o mundo todo em questões de segundos. A internet faz parte da nova cultura de massas que não respeita a privacidade.

A formação da opinião pública
Após o mundo inteiro descobrir que o Primeiro Ministro Michael Callow deveria realizar uma relação sexual ao vivo com uma porca, uma dissonância cognitiva se instaurou unanimemente por toda a opinião pública da Inglaterra. Um país de aspecto conservador jamais apoiaria um ato tão obsceno e desprezível quanto esse, mesmo que a vida de uma princesa esteja sob riscos. Basta um deslize do governo ao contratar um ator pornô para simular o Primeiro Ministro que o jogo vira. Quando o sequestrador descobre da possível farsa a caminho, envia um vídeo cortando o dedo da princesa junto com seu anel favorito, fazendo a opinião mudar rapidamente para uma situação crítica na qual fazer relação sexual com a porca é uma obrigação para salvar a princesa. A cobertura incessante da mídia mostra agora que, 86% da população é a favor do ato, a persuasão midiática entra como protagonista da trama. A opinião pública mudou, a mídia passa a produzir conteúdo voltado para a realização do ato sexual como correto, quem conseguir noticiar algo novo primeiro recebe uma chuva de novos seguidores disparando os dados do ibope. A internet é o grande mediador dos dados, comentários no Twitter, Facebook, Instagram, Youtube e entre outros contribuem para que os meios de comunicação realizem a persuasão daqueles que ainda se mostram contra a opinião popular.

O homem é um ser que se diverte, ainda mais com o detrimento do outro. O Primeiro Ministro ter uma relação sexual com um porco é o entretenimento de toda a nação que saiu mais cedo do trabalho, cancelou atividades e entre outras para assistir o desfecho da situação. Nosso prazer em satisfazer o ego vendo uma desgraça que não é nossa alivia e conforta, traz a sensação do “ainda bem que não é comigo”. A internet traz a todo momento situações como essa, de famosos que morreram acidentados, de desastres naturais que enterram várias vidas de uma vez. No ano de 2015 um acidente de carro tirou a vida do cantor Cristiano Araújo. Acidentes com celebridades costumam acontecer com certa frequência, porém, este ficou marcado por um vazamento das fotos do corpo passando pela autópsia, que foi acessada por milhares de brasileiros curiosos para saber como ficou o cantor após o acidente.

Moral da história
    Black Mirror não é uma fábula, mas mostra uma mensagem interessante de reflexão. Ao desenrolar da narrativa, quando o Primeiro Ministro realiza o ato sexual com a porca, é descoberto que a princesa foi liberada 30 minutos antes do ato ser realizado. O autor do sequestro é revelado, um artista renomado daquele universo fictício. A princesa poderia ter sido encontrada antes e o ato nunca acontecer, mas, os cidadãos se emergiram em uma realidade virtual para acompanhar o caso onde ninguém estava nas ruas, ninguém viria a princesa vagando sem rumo e desorientada. Quando estamos presos no mundo virtual, muitos sonhos, oportunidades e até ameaças acontecem ao nosso lado e não percebemos. Estamos chegando a um nível em que a imaginação do virtual sobrepõe-se ao real, passamos tempo demais imaginando o que pode acontecer com os outros e não nos damos conta do que acontece conosco.

O Primeiro Ministro Michael Callow realizou o ato sexual em rede nacional atingindo quase 1 bilhão de telespectadores simultâneos, a maior audiência da história da televisão. O sensacionalismo barato da mídia e a vontade do telespectador em acompanhar o desfecho de uma situação incomum quanto essa tornou a mensagem do artista Charlie Bloom, o sequestrador, ainda mais presente. Michael abriu mão de sua honra, sua moral e sua privacidade em troca de salvar a princesa Susannah. O nome “O Hino Nacional” vem à tona após um ano do ocorrido, o Primeiro Ministro é considerado um herói nacional por ter feito a relação sexual com a porca, abrindo mão de toda sua privacidade em nome de servir o país em um ato heroico de bravura e destreza que poucos teriam feito, se consolidando ainda mais nas pesquisas de aprovação do governo.

Pensando na ideia de Adorno, 1997, a série nos mostra uma reflexão interessante sobre como a tecnologia e a sociedade moderna impactam em nossas vidas, mas, não podemos esquecer que Black Mirror nada mais é do que uma produção pertencente à Indústria Cultural. A série faz você crer que está refletindo sobre a sociedade, mas, na verdade, está consumindo um produto dessa indústria. Consumimos os produtos para preenchermos nosso cotidiano cinzento e monótono, uma tentativa de libertar-se da angústia diária da vida pelo consumo.

O Circuito da Cultura
    De acordo com alguns consumidores tradicionais dos materiais originais da plataforma Netflix, distribuidora da série, o episódio foi um tanto quanto chocante. Para aqueles acostumados com uma reflexão um pouco mais casual, com finais felizes ou lágrimas derramadas por um acontecimento emotivo, o episódio não apresentou nem um e nem outro. Entrando, então, em um questionamento interessante: para quem foi criado esse episódio? Ora, não foi para o público acostumado com um certo tipo de produção leve e de fácil compreensão, como também não foi para filósofos ou grandes pensadores atuais, pois não passa de um produto para consumo midiático. Para entendermos isso, recorremos ao circuito da cultura, proposto por Paul du Gay, em 1997.

O produto Black Mirror, criado em 2011, como já citado, tem como propósito uma reflexão de como o mundo será no futuro, onde a tecnologia domina as pessoas e rege os acontecimentos mundiais. Ao espectador casual, a reflexão é um tanto quanto complexa, pois faz uma análise de como a evolução tecnológica pode ser um fator decisivo para a mudança da sociedade como um todo e não promove um entretenimento divertido.

    Sua identidade pode ser relacionada ao público não casual, aquele que busca na produção audiovisual uma forma de fugir do cotidiano e compreender o mundo de formatos nas quais ele não participa. De acordo com Stuart Hall, 2006, a identidade é cultural e surge do pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais. Ou seja, a série, mais especificamente o episódio The Nacional Anthem, traz uma gama de representações de identidades que vêem o acontecimento de diversas maneiras diferentes. Enquanto uma parcela se choca ao assistir, vendo como um grande absurdo o episódio mostrar um político sendo obrigado a se relacionar sexualmente com um animal, uma outra parte do público vê como um ato de resistência e luta contra o governo, quebrando sua confiabilidade e manipulando a opinião pública através da transmissão ao vivo.

Na linguagem, fazemos uso de signos e símbolos – sejam eles sonoros, escritos, imagens eletrônicas, notas musicais e até objetos – para significar ou representar para outros indivíduos nossos conceitos, idéias e sentimentos. A linguagem é um dos meios através do qual pensamentos, ideias e sentimentos são representados numa cultura. A representação pela linguagem é, portanto, essencial aos processos pelos quais os significados são produzidos.” (HALL, 2016, pag.18)

    Sobre a representação, nos dias atuais, as produções audiovisuais estão cada vez mais trazendo temáticas diferentes, em especial sobre os problemas sociais. Felizmente, as lutas das minorias têm virado pauta nos grandes veículos, dando visibilidade para o combate às injustiças. Assim, não são as pessoas que olham as mídias e veem nela sua representação, mas é a mídia que se inspira no cotidiano. Elas dependem de olhar para a sociedade e refletir sobre essa sociedade. Ou seja, a mídia necessita de ver a sociedade, entender como ela funciona e dessa maneira, representar essa sociedade. Pois, se não acontecer dessa forma, não existe o consumo deste produto cultural. 

Como exemplo, os filmes da propaganda nazista eram extremamente comuns e produzidos pelo cinema alemão pois, para aquela época, existiam apoiadores do maior ditador já visto na humanidade. Nos dias atuais, é completamente inaceitável qualquer mera adoração a Adolf Hitler. Para Le Goff (Cf. Pesavento, 1995, p.15) representação é a tradução mental de uma realidade exterior percebida e liga-se ao processo de abstração. O imaginário faz parte de um campo de representação e, como expressão do pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da realidade. Mas as imagens e discursos sobre o real não são exatamente o real ou, em outras palavras, não são expressões literais da realidade, como um fiel espelho.

A forma de consumo do conteúdo cultural do circuito da cultura aplicada ao episódio “The Nacional Anthem”, se dá por meio da internet. Cada vez mais, os serviços de streaming como Netflix, Amazon Prime, Disney+ e Starz vem tirando o espaço tradicional da televisão e do rádio. Hoje, a própria televisão se rendeu à internet, com a criação dos mais variados serviços de assinatura digital. O criador da série Black Mirror, a plataforma Netflix, é hoje o serviço de streaming com o maior número de assinantes no mundo, chegando aos 207 milhões, segundo o jornal Visual Capitalist.

    O processo de regulação da série Black Mirror se dá por aqueles que ainda não se converteram aos processos digitais e consomem somente os produtos televisivos. As plataformas de streaming pela internet são o futuro no que diz respeito às produções audiovisuais. O citado Netflix, que, além de ser a maior plataforma em número de assinantes no mundo, também é uma revolução no que diz respeito à produção de conteúdo. No Oscar de 2021, foi também o estúdio com mais indicações e premiações. O longa “Mank”, obra original e exclusiva da plataforma, foi indicada para 10 categorias e venceu 2 delas.

BIBLIOGRAFIA
BAITELLO, Norval, A Era da Iconofagia: Reflexões sobre Imagem, Comunicação, Mídia e Cultura. São Paulo: Paulus, 2014.
BROOKER, Charlie. "The Dark Side of Our Gadget Addiction"The Guardian. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2011/dec/01/charlie-brooker-dark-side-gadget-addiction-black-mirror. Acesso em 05 set. 2021.
CABRAL, João Francisco Pereira. "Conceito de Indústria Cultural em Adorno e Horkheimer";Brasil Escola. Disponivel em: https://brasilescola.uol.com.br/cultura/industria-cultural.htm. Acesso em 05 set. 2021.
HARARI, Yuval. Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã. Trad. Paulo Geiger. São Paulo. Companhia das Letras, 2016
HOHLFELDT, A., MARTINO, L. C e FRANÇA, V. V., Teorias da Comunicação: Conceitos, Escolas e Tendências. Rio de Janeiro. Vozes, 2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo. Editora UNICAMP, 2005.
HORKHEIMER, M., e ADORNO, T. W., Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997
RAMPAZZO, Lino, Antropologia: Religiões e Valores Cristãos. São Paulo: Paulus, 2014.
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