[transcrição]
chorei e ri e falei alto e morri e vivi e sussurrei meus segredos e procurei sentido e senti raiva e senti medo tudo aqui sentada nessa janela
vi os dias passando um engolindo o outro
vi as noites fazendo piruetas e mergulhando pra dentro de si
vi a lua encher e esvaziar e encher outra vez
vi essa luz que é sempre a mesma bater de todos os jeitos diferentes possíveis mudando um pouquinho a cada ver
e continuei aqui
imóvel mas nunca inanimada, habito esse espaço como se fosse uma gaveta
guardei os entulhos, as tralhas e as bugigangas - colecionei com carinho toda essa tranqueira bonita e o resto das gambiarras que fiz de mim, numa arqueologia barata pra tentar desvendar o que sobra da minha memória
os dias melhores parecem um sonho distante
eu sinto falta do mundano, do banal e do sútil - da cidade que ferve, do riso de um amigo, da bagunça, da sujeira, do ruído
sinto falta principalmente das esperanças inocentes de quando era verão e eu ainda achava que a vida era cheia de certezas e o mundo continuaria sendo como sempre foi
me reinventei tantas vezes que já não sobra nada para inventar
e então fiz grandes teatros e magníficos espetáculos sobre o nada
sorri para a sorte de achar uma nova tristeza quando essas daqui já não me cabiam mais
e encontrei algumas velhas angústias escondidas no fundo do meu armário
se a ausência também é força ativa, a falta também ocupa espaço
toda chuva que não me molha é como tempestade
toda taça de vinho é um copo meio vazio
toda sombra de felicidade é a euforia que basta pra subir na mesa e dançar sozinha
não é que a vida fora das janelas continua e essa vida de dentro das janelas fica parada
a vida nunca para
não tem como parar
o que tem de beleza nisso tem de desespero, também
texto, edição, vídeo, narração: Giovanna Almeida Cunha
trilha: Diego Vargas